Entrevista
Ano 8 - nº 67 - 15 de outubro de 2008
Emilia Ferreiro com todas as letras
Emilia Ferreiro, psicóloga e pesquisadora argentina, radicada no México, fez seu doutorado na Universidade de Genebra, sob a orientação de Jean Piaget e, ao contrário de outros grandes pensadores influentes como Piaget, Vygotsky, Montessori, Freire, todos já falecidos, Ferreiro está viva e continua seu trabalho. Nasceu na Argentina em 1937, reside no México, onde trabalha no Departamento de Investigações Educativas (DIE) do Centro de Investigações e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional do México.
Fez seu doutorado sob a orientação de Piaget – na Universidade de Genebra, no final dos anos 60, dentro da linha de pesquisa inaugurada por Hermine Sinclair, que Piaget chamou de psicolingüística genética. Voltou em 1971, à Universidade de Buenos Aires, onde constituiu um grupo de pesquisa sobre alfabetização do qual faziam parte Ana Teberosky, Alicia Lenzi, Suzana Fernandez, Ana Maria Kaufman e Lílian Tolchinsk.
Emilia Ferreiro procurou observar como se realiza a construção da linguagem escrita na criança. Autora de várias obras, muitas traduzidas e publicadas em português, já esteve algumas vezes no país, participando de congressos e seminários.
A entrevista abaixo foi montada a partir de textos de Emilia Ferreiro publicados no livro "Com Todas as Letras".
ReConstruir - Como a senhora vê a alfabetização na América Latina?
Emilia Ferreiro - É difícil falar de alfabetização evitando as posturas dominantes neste campo: por um lado, o discurso oficial e, por outro, o discurso meramente ideologizante, que chamarei "discurso da denúncia". O discurso official centra-se nas estatísticas; o outro despreza essas cifras tratando do desvelar "a face oculta" da alfabetização.
ReConstruir - Qual é a sua opinião sobre a aprovação automática?
Emilia Ferreiro - A promoção automática tem sérios oponentes dentro e fora das fileiras do magistério: sustentam que é uma medida que leva a "baixar a qualidade do ensino" e que faz desaparecer o que seria um dos estímulos fundamentais da aprendizagem (a promoção). A contra-argumentação é evidente: não será porque a qualidade do ensino é tão má que tantas crianças não conseguem aprender? A promoção automática, por si só, não faz senão deslocar o "funil da repetência", criando, em nível de outra série do ensino fundamental, um problema novo para resolver.
ReConstruir - Sabendo que a realidade de muitos países da América Latina é o subdesenvolvimento, como fica a qualidade da alfabetização de crianças e adultos?
Emilia Ferreiro - A alfabetização parece enfrentar-se com um dilema: ao estender o alcance dos serviços educativos, baixa-se a qualidade, e se consegue apenas um "mínimo de alfabetização". Isso é alcançar um nível "técnico rudimentar", apenas a possibilidade de decodificar textos breves e escrever palavras, porém sem atingir a língua escrita como tal. Nada garante que tais aquisições perdurem, sobretudo se levarmos em conta que a vida rural nos países da região ainda não requer um uso cotidiano da língua escrita. Mais ainda: por mais bem sucedidas que sejam as campanhas de alfabetização de adultos, não há garantias de se alcançar percentagens de alfabetização altas e duráveis enquanto a escola primária não cumprir eficazmente sua tarefa alfabetizadora. Na medida em que a escola primária continuar expulsando grupos consideráveis de crianças que não consegue alfabetizar, continuará reproduzindo o anafalbetismo dos adultos.
ReConstruir - Quem é melhor de ser alfabetizado: a criança ou o adulto?
Emilia Ferreiro - De todos os grupos populacionais, as crianças são as mais facilmente alfabetizáveis. Elas têm mais tempo disponível para dedicar à alfabetização do que qualquer outro grupo de idade e estão em processo contínuo de aprendizagem, dentro e fora do contexto escolar, enquanto os adultos já fixaram formas de ação e de conhecimento mais difíceis de modificar.
ReConstruir - Quais são os objetivos da alfabetização inicial?
Emilia Ferreiro - Frequentemente esses objetivos se definem de forma muito geral nos planos e programas, e de uma maneira muito contraditória na prática cotidiana e nos exercícios propostos para a aprendizagem. É comum registrar nos objetivos expostos nas introduções de planos, manuais e programas, que a criança deve alcançar "o prazer da leitura" e que deve ser capaz de "expressar-se por escrito". As práticas convencionais levam, todavia, a que a expressão escrita se confunda com a possibilidade de repetir fórmulas estereotipadas, a que se pratique uma escrita fora do contexto, sem nenhuma função comunicativa real e nem sequer com a função de preservar informação. Um dos resultados conhecidos de todos é que essa expressão escrita é tão pobre e precária que inclusive aqueles que chegam à universidade apresentam sérias deficiências que levaram ao escândalo da presença de "oficinas de leitura e de redação" em várias instituições de nível superior da América Latina. Outro resultado bem conhecido é a grande inibição que os jovens e adultos mal alafabetizados apresentam com respeito à língua escrita: evitam escrever, tanto por medo de cometer erros de ortografia como pela dificuldade de dizer por escrito o que são capazes de dizer oralmente.
ReConstruir - Como deve ser trabalhada a leitura no processo de alfabetização?
Emilia Ferreiro - O "prazer da leitura" leva a privilegiar um único tipo de texto: a narrativa ou a literatura de ficção, esquecendo que uma das funções principais da leitura ao longo de toda a escolaridade é a obtenção de informação a partir de textos escritos. Ainda que as crianças devam ler nas aulas de Estudos Sociais, Ciências Naturais e Matemática, essa leitura aparece dissociada da "leitura" que corresponde às auilas de língua. Um dos resultados é, uma vez mais, um déficit bem conhecido em nível dos cursos médio e superior: os estudantes não sabem resumir um texto, não são capazes de reconhecer as idéias principais e, o que é pior, não sabem seguir uma linha argumentativa de modo a identificar se as conclusões que se apresentam são coerentes com a argumentação precedente. Portanto, não são leitores críticos capazes de perguntar-se, diante de um texto, se há razões para compartilhar do ponto de vista ou da argumentação do autor.
ReConstruir - A metodologia, então, deve ser mudada?
Emilia Ferreiro - A ênfase praticamente exclusiva na cópia, durante as etapas iniciais da aprendizagem, excluindo tentativas de criar representações para séries de unidades linguísticas similares (listas) ou para mensagens sintaticamente elaboradas (textos), faz com que a escrita se apresente como um projeto alheio à própria capacidade de compreensão. Está ali para ser copiado, reproduzido, porém não compreendido, nem recriado.
ReConstruir - Você afirma que a compreensão das funções da língua escrita na sociedade depende de como a família e a escola estimulam o ambiente alfabetizado...
Emilia Ferreiro - As crianças que crescem em famílias onde há pessoas alfabetizadas e onde ler e escrever são atividades cotidianas, recebem esta informação através da participação em atos sociais onde a língua escrita cumpre funções precisas. Por exemplo, a lista de compras do mercado; uma busca na lista telefônica de algum serviço de conserto de aparelhos quebrados; o recebimento de um recado que deve ser lido por outro familiar. Essa informação que uma criança que cresce em um ambiente alfabetizado recebe cotidianamente é inacessível para aqueles que crescem em lares com níveis de alfabetização baixos ou nulos. Isso é o que a escola "dá por sabido", ocultando assim sistematicamente, àqueles que mais necessitam, para que serve a língua escrita.
ReConstruir - Mas o aprendizado não deve ser feito num ambiente de criatividade?
Emilia Ferreiro - Por mais que se repita nas declarações iniciais dos métodos, manuais ou programas, que a criança aprende em função de sua atividade, e que se tem que estimular o raciocínio e a criatividade, as práticas de introdução à língua escrita desmentem sistematicamente tais declarações. O ensino neste domínio continua apegado às práticas mais envelhecidas da escola tradicional, aquelas que supõem que só se aprende algo através da repetição, da memorização, da cópia reiterada de modelos, da mecanização.
ReConstruir - Existe saída para termos uma melhor alfabetização?
Emilia Ferreiro - Com base em uma série de experiências inovadoras de alfabetização, parece viável estabelecer de maneira diferente os objetivos da alfabetização de crianças. Em dois anos de escolaridade crianças muito marginalizadas podem conseguir uma alfabetização de melhor qualidade, entendendo por isso: compreensão do modo de representação da linguagem que corresponde ao sistema alfabético da escrita; compreensão das funções sociais da escrita; leitura compreensiva de textos que correspondem a diferentes registros de língua escrita; produção de textos respeitando os modos de organização da língua escrita que correspondem a esses diferentes registros; atitude de curiosidade e falta de medo diante da língua escrita.
Fonte : http://www.educacaomoral.org.br/reconstruir/entrevista_edicao_67.htm
Emília Ferreiro – Alfabetização e cultura escrita
Entrevista com Emília Ferreiro
Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/edicoes/0162/aberto/mt_245461.shtml
“Quem alfabetiza com textos variados prepara melhor para a internet”
Desde os anos 1980, não é possível tratar de alfabetização sem falar de Emilia Ferreiro. A psicolingüista argentina, discípula de Jean Piaget, revolucionou o conhecimento que se tinha sobre a aquisição da leitura e da escrita quando lançou, com Ana Teberosky, o livro Psicogênese da Língua Escrita, em que descreve os estágios pelos quais as crianças passam até compreender o ler e o escrever. Crítica ferrenha da cartilha, ela defende que os alunos, ainda analfabetos, devem ter contato com diversos tipos de texto. Passadas mais de duas décadas, o tema permanece no centro dos interesses da pesquisadora, que se indigna com quem defende o método fônico de alfabetização, baseado em exercícios para treinar a correspondência entre grafemas e fonemas. Professora do Centro de Investigação e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, do México, Emilia está à frente do site www.chicosyescritores.org, em que estudantes escrevem em parceria com autores renomados e publicam os próprios textos. Ela esteve em São Paulo em março e concedeu a seguinte entrevista.
O que é ser alfabetizado hoje?
Considero a alfabetização não um estado, mas um processo. Ele tem início bem cedo e não termina nunca. Nós não somos igualmente alfabetizados para qualquer situação de uso da língua escrita. Temos mais facilidade para ler determinados textos e evitamos outros. O conceito também muda de acordo com as épocas, as culturas e a chegada da tecnologia.
A senhora sustenta a importância de levar o estudante a refletir sobre a escrita, já que é assim que ele aprende. Qual sua opinião sobre o método fônico (baseado no treinamento prévio da correspondência entre grafemas e fonemas)?
Eu não aceito discutir alfabetização hoje nos mesmos termos que se discutia nos anos 1920. Os defensores do método fônico não levam em conta um dado que sabemos hoje ser fundamental, que é o nível de conscientização da criança sobre a escrita. Ignorar que ela pensa e tem condições de escrever desde muito cedo é um retrocesso. Eu não admito que a proíbam de escrever. A tradição fônica sempre foi dominante nos países anglo-saxões. E lá se aprende a ler antes de escrever. Felizmente não é o que acontece nos países latinos.
O que é essa consciência fonológica?
É a possibilidade de fazer voluntariamente certas operações com a oralidade que não são espontâneas. É possível dizer uma palavra, “lado”, por exemplo, e depois omitir o primeiro segmento fônico. “Ado” não significa nada. Isso pode ser um jogo divertido. A língua tem a propriedade de ser partida em unidades de distintos tipos até chegar às letras. Aí não posso dividir mais. Essa é uma habilidade humana. A divisão em sílabas se dá praticamente em todas as culturas.
“Ignorar que a criança pensa e tem condições de escrever desde muito cedo é um retrocesso”
De que maneira se adquire a consciência fonológica?
Desde pequenos participamos naturalmente de jogos em que cada sílaba corresponde a uma palma, por exemplo. A única divisão que não surge naturalmente no desenvolvimento é em unidades menores que uma sílaba, ou seja, em fonemas. Um adulto analfabeto e uma criança analfabeta não conseguem fazer isso de maneira espontânea. Quando eu adquiro a linguagem oral, tenho uma certa capacidade de distinção fônica, senão não distinguiria pata de bata. Mas parece que isso funciona num universo completamente inconsciente.
O que vem primeiro, a aquisição do sistema alfabético ou a consciência fonológica?
À medida que a criança se aproxima da escrita alfabética, sua capacidade de análise do oral também permite análises de pedaços cada vez menores do que é falado. A discussão é a seguinte: já que as duas coisas ocorrem ao mesmo tempo, tenho de desenvolver primeiro a consciência fonológica esperando que ela se aplique à escrita? Ou posso introduzir o aluno na escrita para que haja uma contribuição à sua consciência fonológica? Acredito na segunda opção. Isso se dá em virtude do contato dele com os textos, do seu esforço para escrever e do trabalho em pequenos grupos, onde ele discute com os colegas a necessidade de utilizar determinadas letras.
Essa relação entre a consciência fonológica e a aquisição do sistema alfabético tem sido estudada por pesquisadores?
Publiquei um artigo em 1999 sobre um estudo realizado com crianças com média de idade de 5 anos e 7 meses, no México. Eram passadas tarefas que verificavam a consciência fonológica dos estudantes, isto é, se eles eram capazes de analisar palavras em pedaços menores que sílabas. Ao mesmo tempo, eles realizavam exercícios que investigavam seu nível de conceituação da escrita. As crianças eram da pré-escola e não estavam sendo alfabetizadas. Os resultados mostraram correlações altíssimas entre o nível de conscientização da escrita e os recortes em contextos orais. Duas pesquisadoras americanas acabaram de publicar um estudo com crianças inglesas em que as mesmas conclusões são apresentadas.
Com a internet, o perfil do leitor mudou. No contato com a rede, há alguma diferença no desempenho dos estudantes alfabetizados nessas duas metodologias?
Sempre defendi o acesso imediato da criança a jornais, revistas, livros de literatura, dicionários, enciclopédias. A tendência de quem não compartilha da minha opinião é ter livros com níveis de dificuldades seriados. Com o advento da internet nasceu também o espaço mais intertextual e mais variado que existe, mais até que uma biblioteca. Ou seja, quem está alfabetizando com textos variados prepara sua turma muitíssimo mais para a internet do que quem faz um trabalho mostrando primeiro uma letrinha e depois a outra. Para utilizar o computador e a internet é preciso enfrentar todo o alfabeto ao mesmo tempo. No teclado, as letras aparecem juntas — e, como se não bastasse, fora de ordem.
“Letramento no lugar de alfabetização, tudo bem. A coexistência dos dois termos é que não funciona”
Além da alfabetização, hoje se fala muito em letramento. De onde vem o termo?
A palavra letramento é tradução de literacy. Em sua origem, ela significa alfabetização e muito mais. Se entrarmos em qualquer site de busca e digitarmos “literacy” aparecem muitos endereços. Encontra-se uma série de combinações com esse termo, como computer literacy, mostrando que o significado atual dessa palavra em inglês é expertise, é ter conhecimento. Mas é muito importante compreender que a expressão computer literacy não designa a habilidade de usar a língua escrita por meio de um computador. Seu significado é a habilidade para usar os comandos da máquina, para entrar num processador de texto e nos programas elementares.
Letramento é a melhor tradução para literacy?
Não. É cultura escrita. E isso não tem início depois da aprendizagem do código. Se dá, por exemplo, no momento em que um adulto lê em voz alta para uma criança — e nas famílias de classe média isso ocorre muito antes do início da escolaridade. Ou seja, o processo de alfabetização é desencadeado com o acesso à cultura escrita.
O letramento representa um conceito novo ou é apenas um modismo?
Há algum tempo, descobriram no Brasil que se podia usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à velha consciência fonológica.
É indispensável usar o termo letramento, então?
Eu não uso a palavra letramento. Se houvesse uma votação e ficasse decidido que preferimos usar letramento em vez de alfabetização, tudo bem. A coexistência dos termos é que não dá.
http://www6.ufrgs.br/psicoeduc/piaget/emilia-ferreiro-alfabetizacao-e-cultura-escrita/
O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO DA CRIANÇA SEGUNDO
EMILIA FERREIRO.
http://www.revista.inf.br/pedagogia/pages/artigos/edic11-anovi-art02.pdf
PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA: AS CONTRIBUIÇÕES DE EMILIA
FERREIRO À ALFABETIZAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS
http://www.anped.org.br/reunioes/27/gt18/t181.pdf
Emilia Ferreiro, a estudiosa que revolucionou a alfabetização
http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-inicial/estudiosa-revolucionou-alfabetizacao-423543.shtml?page=all
Ano 8 - nº 67 - 15 de outubro de 2008
Emilia Ferreiro com todas as letras
Emilia Ferreiro, psicóloga e pesquisadora argentina, radicada no México, fez seu doutorado na Universidade de Genebra, sob a orientação de Jean Piaget e, ao contrário de outros grandes pensadores influentes como Piaget, Vygotsky, Montessori, Freire, todos já falecidos, Ferreiro está viva e continua seu trabalho. Nasceu na Argentina em 1937, reside no México, onde trabalha no Departamento de Investigações Educativas (DIE) do Centro de Investigações e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional do México.
Fez seu doutorado sob a orientação de Piaget – na Universidade de Genebra, no final dos anos 60, dentro da linha de pesquisa inaugurada por Hermine Sinclair, que Piaget chamou de psicolingüística genética. Voltou em 1971, à Universidade de Buenos Aires, onde constituiu um grupo de pesquisa sobre alfabetização do qual faziam parte Ana Teberosky, Alicia Lenzi, Suzana Fernandez, Ana Maria Kaufman e Lílian Tolchinsk.
Emilia Ferreiro procurou observar como se realiza a construção da linguagem escrita na criança. Autora de várias obras, muitas traduzidas e publicadas em português, já esteve algumas vezes no país, participando de congressos e seminários.
A entrevista abaixo foi montada a partir de textos de Emilia Ferreiro publicados no livro "Com Todas as Letras".
ReConstruir - Como a senhora vê a alfabetização na América Latina?
Emilia Ferreiro - É difícil falar de alfabetização evitando as posturas dominantes neste campo: por um lado, o discurso oficial e, por outro, o discurso meramente ideologizante, que chamarei "discurso da denúncia". O discurso official centra-se nas estatísticas; o outro despreza essas cifras tratando do desvelar "a face oculta" da alfabetização.
ReConstruir - Qual é a sua opinião sobre a aprovação automática?
Emilia Ferreiro - A promoção automática tem sérios oponentes dentro e fora das fileiras do magistério: sustentam que é uma medida que leva a "baixar a qualidade do ensino" e que faz desaparecer o que seria um dos estímulos fundamentais da aprendizagem (a promoção). A contra-argumentação é evidente: não será porque a qualidade do ensino é tão má que tantas crianças não conseguem aprender? A promoção automática, por si só, não faz senão deslocar o "funil da repetência", criando, em nível de outra série do ensino fundamental, um problema novo para resolver.
ReConstruir - Sabendo que a realidade de muitos países da América Latina é o subdesenvolvimento, como fica a qualidade da alfabetização de crianças e adultos?
Emilia Ferreiro - A alfabetização parece enfrentar-se com um dilema: ao estender o alcance dos serviços educativos, baixa-se a qualidade, e se consegue apenas um "mínimo de alfabetização". Isso é alcançar um nível "técnico rudimentar", apenas a possibilidade de decodificar textos breves e escrever palavras, porém sem atingir a língua escrita como tal. Nada garante que tais aquisições perdurem, sobretudo se levarmos em conta que a vida rural nos países da região ainda não requer um uso cotidiano da língua escrita. Mais ainda: por mais bem sucedidas que sejam as campanhas de alfabetização de adultos, não há garantias de se alcançar percentagens de alfabetização altas e duráveis enquanto a escola primária não cumprir eficazmente sua tarefa alfabetizadora. Na medida em que a escola primária continuar expulsando grupos consideráveis de crianças que não consegue alfabetizar, continuará reproduzindo o anafalbetismo dos adultos.
ReConstruir - Quem é melhor de ser alfabetizado: a criança ou o adulto?
Emilia Ferreiro - De todos os grupos populacionais, as crianças são as mais facilmente alfabetizáveis. Elas têm mais tempo disponível para dedicar à alfabetização do que qualquer outro grupo de idade e estão em processo contínuo de aprendizagem, dentro e fora do contexto escolar, enquanto os adultos já fixaram formas de ação e de conhecimento mais difíceis de modificar.
ReConstruir - Quais são os objetivos da alfabetização inicial?
Emilia Ferreiro - Frequentemente esses objetivos se definem de forma muito geral nos planos e programas, e de uma maneira muito contraditória na prática cotidiana e nos exercícios propostos para a aprendizagem. É comum registrar nos objetivos expostos nas introduções de planos, manuais e programas, que a criança deve alcançar "o prazer da leitura" e que deve ser capaz de "expressar-se por escrito". As práticas convencionais levam, todavia, a que a expressão escrita se confunda com a possibilidade de repetir fórmulas estereotipadas, a que se pratique uma escrita fora do contexto, sem nenhuma função comunicativa real e nem sequer com a função de preservar informação. Um dos resultados conhecidos de todos é que essa expressão escrita é tão pobre e precária que inclusive aqueles que chegam à universidade apresentam sérias deficiências que levaram ao escândalo da presença de "oficinas de leitura e de redação" em várias instituições de nível superior da América Latina. Outro resultado bem conhecido é a grande inibição que os jovens e adultos mal alafabetizados apresentam com respeito à língua escrita: evitam escrever, tanto por medo de cometer erros de ortografia como pela dificuldade de dizer por escrito o que são capazes de dizer oralmente.
ReConstruir - Como deve ser trabalhada a leitura no processo de alfabetização?
Emilia Ferreiro - O "prazer da leitura" leva a privilegiar um único tipo de texto: a narrativa ou a literatura de ficção, esquecendo que uma das funções principais da leitura ao longo de toda a escolaridade é a obtenção de informação a partir de textos escritos. Ainda que as crianças devam ler nas aulas de Estudos Sociais, Ciências Naturais e Matemática, essa leitura aparece dissociada da "leitura" que corresponde às auilas de língua. Um dos resultados é, uma vez mais, um déficit bem conhecido em nível dos cursos médio e superior: os estudantes não sabem resumir um texto, não são capazes de reconhecer as idéias principais e, o que é pior, não sabem seguir uma linha argumentativa de modo a identificar se as conclusões que se apresentam são coerentes com a argumentação precedente. Portanto, não são leitores críticos capazes de perguntar-se, diante de um texto, se há razões para compartilhar do ponto de vista ou da argumentação do autor.
ReConstruir - A metodologia, então, deve ser mudada?
Emilia Ferreiro - A ênfase praticamente exclusiva na cópia, durante as etapas iniciais da aprendizagem, excluindo tentativas de criar representações para séries de unidades linguísticas similares (listas) ou para mensagens sintaticamente elaboradas (textos), faz com que a escrita se apresente como um projeto alheio à própria capacidade de compreensão. Está ali para ser copiado, reproduzido, porém não compreendido, nem recriado.
ReConstruir - Você afirma que a compreensão das funções da língua escrita na sociedade depende de como a família e a escola estimulam o ambiente alfabetizado...
Emilia Ferreiro - As crianças que crescem em famílias onde há pessoas alfabetizadas e onde ler e escrever são atividades cotidianas, recebem esta informação através da participação em atos sociais onde a língua escrita cumpre funções precisas. Por exemplo, a lista de compras do mercado; uma busca na lista telefônica de algum serviço de conserto de aparelhos quebrados; o recebimento de um recado que deve ser lido por outro familiar. Essa informação que uma criança que cresce em um ambiente alfabetizado recebe cotidianamente é inacessível para aqueles que crescem em lares com níveis de alfabetização baixos ou nulos. Isso é o que a escola "dá por sabido", ocultando assim sistematicamente, àqueles que mais necessitam, para que serve a língua escrita.
ReConstruir - Mas o aprendizado não deve ser feito num ambiente de criatividade?
Emilia Ferreiro - Por mais que se repita nas declarações iniciais dos métodos, manuais ou programas, que a criança aprende em função de sua atividade, e que se tem que estimular o raciocínio e a criatividade, as práticas de introdução à língua escrita desmentem sistematicamente tais declarações. O ensino neste domínio continua apegado às práticas mais envelhecidas da escola tradicional, aquelas que supõem que só se aprende algo através da repetição, da memorização, da cópia reiterada de modelos, da mecanização.
ReConstruir - Existe saída para termos uma melhor alfabetização?
Emilia Ferreiro - Com base em uma série de experiências inovadoras de alfabetização, parece viável estabelecer de maneira diferente os objetivos da alfabetização de crianças. Em dois anos de escolaridade crianças muito marginalizadas podem conseguir uma alfabetização de melhor qualidade, entendendo por isso: compreensão do modo de representação da linguagem que corresponde ao sistema alfabético da escrita; compreensão das funções sociais da escrita; leitura compreensiva de textos que correspondem a diferentes registros de língua escrita; produção de textos respeitando os modos de organização da língua escrita que correspondem a esses diferentes registros; atitude de curiosidade e falta de medo diante da língua escrita.
Fonte : http://www.educacaomoral.org.br/reconstruir/entrevista_edicao_67.htm
Emília Ferreiro – Alfabetização e cultura escrita
Entrevista com Emília Ferreiro
Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/edicoes/0162/aberto/mt_245461.shtml
“Quem alfabetiza com textos variados prepara melhor para a internet”
Desde os anos 1980, não é possível tratar de alfabetização sem falar de Emilia Ferreiro. A psicolingüista argentina, discípula de Jean Piaget, revolucionou o conhecimento que se tinha sobre a aquisição da leitura e da escrita quando lançou, com Ana Teberosky, o livro Psicogênese da Língua Escrita, em que descreve os estágios pelos quais as crianças passam até compreender o ler e o escrever. Crítica ferrenha da cartilha, ela defende que os alunos, ainda analfabetos, devem ter contato com diversos tipos de texto. Passadas mais de duas décadas, o tema permanece no centro dos interesses da pesquisadora, que se indigna com quem defende o método fônico de alfabetização, baseado em exercícios para treinar a correspondência entre grafemas e fonemas. Professora do Centro de Investigação e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, do México, Emilia está à frente do site www.chicosyescritores.org, em que estudantes escrevem em parceria com autores renomados e publicam os próprios textos. Ela esteve em São Paulo em março e concedeu a seguinte entrevista.
O que é ser alfabetizado hoje?
Considero a alfabetização não um estado, mas um processo. Ele tem início bem cedo e não termina nunca. Nós não somos igualmente alfabetizados para qualquer situação de uso da língua escrita. Temos mais facilidade para ler determinados textos e evitamos outros. O conceito também muda de acordo com as épocas, as culturas e a chegada da tecnologia.
A senhora sustenta a importância de levar o estudante a refletir sobre a escrita, já que é assim que ele aprende. Qual sua opinião sobre o método fônico (baseado no treinamento prévio da correspondência entre grafemas e fonemas)?
Eu não aceito discutir alfabetização hoje nos mesmos termos que se discutia nos anos 1920. Os defensores do método fônico não levam em conta um dado que sabemos hoje ser fundamental, que é o nível de conscientização da criança sobre a escrita. Ignorar que ela pensa e tem condições de escrever desde muito cedo é um retrocesso. Eu não admito que a proíbam de escrever. A tradição fônica sempre foi dominante nos países anglo-saxões. E lá se aprende a ler antes de escrever. Felizmente não é o que acontece nos países latinos.
O que é essa consciência fonológica?
É a possibilidade de fazer voluntariamente certas operações com a oralidade que não são espontâneas. É possível dizer uma palavra, “lado”, por exemplo, e depois omitir o primeiro segmento fônico. “Ado” não significa nada. Isso pode ser um jogo divertido. A língua tem a propriedade de ser partida em unidades de distintos tipos até chegar às letras. Aí não posso dividir mais. Essa é uma habilidade humana. A divisão em sílabas se dá praticamente em todas as culturas.
“Ignorar que a criança pensa e tem condições de escrever desde muito cedo é um retrocesso”
De que maneira se adquire a consciência fonológica?
Desde pequenos participamos naturalmente de jogos em que cada sílaba corresponde a uma palma, por exemplo. A única divisão que não surge naturalmente no desenvolvimento é em unidades menores que uma sílaba, ou seja, em fonemas. Um adulto analfabeto e uma criança analfabeta não conseguem fazer isso de maneira espontânea. Quando eu adquiro a linguagem oral, tenho uma certa capacidade de distinção fônica, senão não distinguiria pata de bata. Mas parece que isso funciona num universo completamente inconsciente.
O que vem primeiro, a aquisição do sistema alfabético ou a consciência fonológica?
À medida que a criança se aproxima da escrita alfabética, sua capacidade de análise do oral também permite análises de pedaços cada vez menores do que é falado. A discussão é a seguinte: já que as duas coisas ocorrem ao mesmo tempo, tenho de desenvolver primeiro a consciência fonológica esperando que ela se aplique à escrita? Ou posso introduzir o aluno na escrita para que haja uma contribuição à sua consciência fonológica? Acredito na segunda opção. Isso se dá em virtude do contato dele com os textos, do seu esforço para escrever e do trabalho em pequenos grupos, onde ele discute com os colegas a necessidade de utilizar determinadas letras.
Essa relação entre a consciência fonológica e a aquisição do sistema alfabético tem sido estudada por pesquisadores?
Publiquei um artigo em 1999 sobre um estudo realizado com crianças com média de idade de 5 anos e 7 meses, no México. Eram passadas tarefas que verificavam a consciência fonológica dos estudantes, isto é, se eles eram capazes de analisar palavras em pedaços menores que sílabas. Ao mesmo tempo, eles realizavam exercícios que investigavam seu nível de conceituação da escrita. As crianças eram da pré-escola e não estavam sendo alfabetizadas. Os resultados mostraram correlações altíssimas entre o nível de conscientização da escrita e os recortes em contextos orais. Duas pesquisadoras americanas acabaram de publicar um estudo com crianças inglesas em que as mesmas conclusões são apresentadas.
Com a internet, o perfil do leitor mudou. No contato com a rede, há alguma diferença no desempenho dos estudantes alfabetizados nessas duas metodologias?
Sempre defendi o acesso imediato da criança a jornais, revistas, livros de literatura, dicionários, enciclopédias. A tendência de quem não compartilha da minha opinião é ter livros com níveis de dificuldades seriados. Com o advento da internet nasceu também o espaço mais intertextual e mais variado que existe, mais até que uma biblioteca. Ou seja, quem está alfabetizando com textos variados prepara sua turma muitíssimo mais para a internet do que quem faz um trabalho mostrando primeiro uma letrinha e depois a outra. Para utilizar o computador e a internet é preciso enfrentar todo o alfabeto ao mesmo tempo. No teclado, as letras aparecem juntas — e, como se não bastasse, fora de ordem.
“Letramento no lugar de alfabetização, tudo bem. A coexistência dos dois termos é que não funciona”
Além da alfabetização, hoje se fala muito em letramento. De onde vem o termo?
A palavra letramento é tradução de literacy. Em sua origem, ela significa alfabetização e muito mais. Se entrarmos em qualquer site de busca e digitarmos “literacy” aparecem muitos endereços. Encontra-se uma série de combinações com esse termo, como computer literacy, mostrando que o significado atual dessa palavra em inglês é expertise, é ter conhecimento. Mas é muito importante compreender que a expressão computer literacy não designa a habilidade de usar a língua escrita por meio de um computador. Seu significado é a habilidade para usar os comandos da máquina, para entrar num processador de texto e nos programas elementares.
Letramento é a melhor tradução para literacy?
Não. É cultura escrita. E isso não tem início depois da aprendizagem do código. Se dá, por exemplo, no momento em que um adulto lê em voz alta para uma criança — e nas famílias de classe média isso ocorre muito antes do início da escolaridade. Ou seja, o processo de alfabetização é desencadeado com o acesso à cultura escrita.
O letramento representa um conceito novo ou é apenas um modismo?
Há algum tempo, descobriram no Brasil que se podia usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à velha consciência fonológica.
É indispensável usar o termo letramento, então?
Eu não uso a palavra letramento. Se houvesse uma votação e ficasse decidido que preferimos usar letramento em vez de alfabetização, tudo bem. A coexistência dos termos é que não dá.
http://www6.ufrgs.br/psicoeduc/piaget/emilia-ferreiro-alfabetizacao-e-cultura-escrita/
O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO DA CRIANÇA SEGUNDO
EMILIA FERREIRO.
http://www.revista.inf.br/pedagogia/pages/artigos/edic11-anovi-art02.pdf
PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA: AS CONTRIBUIÇÕES DE EMILIA
FERREIRO À ALFABETIZAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS
http://www.anped.org.br/reunioes/27/gt18/t181.pdf
Emilia Ferreiro, a estudiosa que revolucionou a alfabetização
http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-inicial/estudiosa-revolucionou-alfabetizacao-423543.shtml?page=all