Magda Soares
Realizada em: 21/9/2009
Atuação: Professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais
Obras: Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998; Português: uma proposta para o letramento. São Paulo: Moderna, 2002; Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n. 81, p.143-160, 2002; Alfabetização. Brasília: MEC/Inep/Comped, 2001.
Anos iniciais do Ensino Fundamental
Observação: Esta entrevista foi realizada em Lagoa Santa (MG), onde era realizada a exposição do Projeto Paralfaletrar, que tem a consultoria da Professora Magda Soares e da equipe do CEALE-UFMG.
Salto – Hoje nós temos o Ensino Fundamental ampliado: a criança com seis anos já entra no primeiro ano desta etapa da escolaridade. Como podemos pensar situações de aprendizagem que coloquem essa criança em processo de alfabetização e letramento?
Magda Soares – Essa criança, na verdade, já deve ter sido colocada na situação de alfabetização e letramento na educação infantil, uma vez que não se pode pensar que a criança está inaugurando seu processo de letramento e de escrita aos seis anos. Antes até de chegar na educação infantil, ela está convivendo com leitura, material escrito, mesmo nas camadas populares, pois nós vivemos numa sociedade grafocêntrica, cercada de livros e escrita por todos os lados. Então, é uma continuidade. A primeira coisa é que, aos seis anos, não é um momento de inauguração, é um momento de continuidade. É preciso ver em que nível a criança está de apropriação, tanto do sistema de escrita, quanto do processo de letramento para, a partir disso, criar situações em que esse processo tenha continuidade.
Salto – Como podemos conceituar letramento?
Magda Soares – Aqui, nesta exposição, nós estamos rodeados de atividades de letramento. São crianças que estão em fase de alfabetização, temos aqui trabalhos de crianças desde a creche até o segundo, terceiro ano, no novo modelo, considerando este o terceiro ano das crianças que entraram aos seis anos. São crianças em processo de alfabetização, de apropriação do sistema alfabético e ortográfico de escrita, mas elas estão se apropriando disso no contexto de letramento, lendo livros de literatura infantil, e a partir daí a professora trabalha alfabetização. Elas estão escrevendo em situações reais criadas pela professora, não é uma situação falsa. A literatura dá um apoio muito forte a esse letramento. Por que, o que é o letramento? São as práticas de leitura e de escrita. Uma coisa é aprender sistema de escrita, para poder ler e escrever. Mas isso não resolve o problema da entrada no mundo da escrita. É preciso saber fazer uso disso, saber escrever uma carta, saber escrever uma história, saber escrever uma fábula, um convite, etc. Mas fazer isso numa situação contextualizada, saber para quem eu estou escrevendo, porque estou escrevendo, tendo motivação para escrever. O papel da professora, da escola, é criar essas situações que permitam esse desenvolvimento da alfabetização e do letramento articulados e, ao mesmo tempo, indissociáveis. Eu acho que essa é a síntese que nós conseguimos fazer agora. Nós tivemos um período em que ensinávamos o "beabá", para depois a criança praticar isso. Depois passamos por um período, que foi a época do construtivismo, em que esse "beabá" foi desprezado, de certa forma, foi marginalizado como um subproduto do letramento, ou seja, do convívio da criança com o material escrito. Acho que agora nós chegamos ao momento da síntese, que não é isto ou aquilo, são as duas coisas ao mesmo tempo, articuladas, embora cada uma com a sua especificidade quanto à metodologia de trabalho.
Salto – No primeiro ano do Ensino Fundamental, de que oportunidades de aprendizagem o professor pode lançar mão para poder trabalhar com essas questões já aos seis anos?
Magda Soares – Eu não diria que "já aos seis anos", porque este processo já começou antes. Mas, aos seis anos, o professor vai, talvez, colocar um foco maior na aprendizagem do sistema de escrita, mas sempre no contexto do letramento, criando situações de leitura de histórias para crianças. Se eu der um livro de histórias para a criança, sabendo ler este livro, dando todo contexto de letramento em que ele foi escrito, as próprias características do livro – quem escreveu, quem ilustrou esse livro – tudo isso interessa muito à criança, que está na fase da fantasia. Lemos a história para a criança e, depois, trabalhamos algumas frases, algumas palavras. Ao invés de você buscar "A Eva viu a uva", vamos buscar uma frase que está no livro, contextualizada para a criança, aquela palavra central. Vamos pegar o LOBO da história da Chapeuzinho Vermelho, e trabalhar o LOBO: escrever LOBO no quadro, trabalhar fonologicamente a palavra lobo, e dividir as sílabas – "o LO, se eu trocar o O por A vai ser o quê?" "Vai ser LA". É uma atividade lúdica, em que as crianças se divertem muito. Nós temos provas disso aqui neste município (Lagoa Santa), como as crianças gostam dessa articulação: de pegar o LOBO da história e transformá-lo em uma palavra a ser analisada.
Salto – Nós tivemos a oportunidade de gravar aqui, em Lagoa Santa, uma atividade em que a professora começava a contar a história, que era uma fábula de Monteiro Lobato, apresentando a capa do livro, a contracapa, abordando quem seria o autor, falando da editora. Qual a importância da apresentação destes elementos do livro para as crianças?
Magda Soares – Uma das facetas importantes do processo de letramento, sobretudo no plano atual, é conseguirmos contaminar as crianças com o prazer de ler o livro, com o gosto da leitura, com a paixão da leitura, que a gente tem perdido muito. E há razões para isso, que não interessa dizer aqui. Nós temos trabalhado muito o livro como um objeto cultural, e não só o livro como portador de texto, mas o livro como objeto cultural. A gente faz as crianças cheirarem o livro, pegarem o livro, ver que o livro é um objeto que tem suas partes, como nós temos o rosto, as costas, as pernas, os braços. O livro tem a lombada, a capa, a quarta capa, e as crianças gostam muito disso. A ponto de vermos, frequentemente, crianças chegarem à biblioteca da escola e pedirem assim: "Essa semana eu quero levar para casa um livro, mas eu quero um livro que tenha lombada". E eu perguntei a uma criança: "Por que você quer um livro que tenha lombada?"; "Porque ele fica em pé." Esses livros infantis são muito fininhos, tanto que, na nossa biblioteca, eles ficam expostos; mas o livro mais grosso, de capa dura, ele fica em pé. E a criança queria um livro que tivesse lombada, e vemos como é importante isso: a criança tem uma relação com o livro, que é uma relação com o objeto cultural.
É feito um passeio pela exposição, que apresenta vários trabalhos de leitura e escrita (veja imagens dos trabalhos).
Salto – Fale sobre a riqueza que esse trabalho nos apresenta, e da especificidade lúdica que um trabalho como esse de alfabetização e letramento vai exigir, vai requerer.
Magda Soares – Eu acho que o que fica mais forte nesta exposição é observar um aspecto importante: costuma-se criticar e temer que, nessa entrada da criança aos seis anos no ensino fundamental, ela seria impedida de brincar, etc. Isso é uma falta de visão de como a alfabetização e o letramento podem ser atividades lúdicas, que envolvem muito a criança, tanto no aprender o sistema de escrita quanto, sobretudo, na aprendizagem da leitura. Como estamos vendo aqui, por exemplo: a criança trabalhando com trava-línguas. São crianças de seis anos, estão no 1º ano. Trava-línguas, o que é? É uma brincadeira, uma brincadeira com a escrita: "Papagaio come milho, Periquito leva a fama. Cantaram uns, choraram outros. Triste sina de quem ama". Isso está desenvolvendo a consciência fonológica, que é fundamental para a alfabetização e, ao mesmo tempo, a criança está escrevendo, está desenhando, está montando o caderninho dela de trava-línguas, com editora, com conceito de editora, conceito de capa, tudo isso ao mesmo tempo.
Sobre a história em quadrinhos e o relatório: Nós colocamos muita ênfase no trabalho com gêneros diversos, que é algo fundamental para o letramento. Tempos atrás, só se trabalhava com a criança a história. A criança gosta de historinha, então devemos trabalhar só com histórias? Não. É preciso trabalhar com todos os gêneros. Por exemplo: aqui são crianças de Infantil 2, crianças de 5 anos, já trabalhando com história em quadrinhos e relatório. Elas já conseguem escrever o nome dos autores, o nome da escola, a história que leram, eles fazem a ilustração da história. Trabalham com as características da história em quadrinhos: as figuras, o uso do balão, eles ditam para a professora as falas, e as que já sabem escrever, escrevem diretamente. Estão criando o conceito de escrita de história em quadrinhos, o uso dos balões da história em quadrinhos.
Sobre a história da Dona Baratinha: Foi contada a história, mostrou-se o livro, o ilustrador, o autor, etc. Depois, as crianças fizeram um livro e, quando elas fazem, sabem que tem a folha de rosto, e elas usam essa terminologia: "Ana Maria Machado contou e o terceiro ano recontou!". É um reconto da história da baratinha. Todos escrevem seus nomes e reescrevem a história. O interessante é que, quando dizem que ela vai casar, criam um livro de noivas, com vestidos, uma revista de noivas, para Dona Baratinha escolher o vestido dela. A criança vai descobrindo o uso da escrita para várias finalidades. Tem o convite de casamento. E a professora traz um convite de casamento para as crianças, mostra o convite e diz a finalidade daquele convite, e para onde vão os convites. E muitas das nossas crianças são de camadas populares e não vivenciam o uso de tudo isto. Tem a receita do bolo, elas discutiram como se constrói uma receita, viram livros. Construíram um mapa da festa e, assim, articulam este conhecimento com outras áreas. Trabalha-se o bilhete contextualizado com a história. É lúdico, as crianças se divertem para criar isto. Pensam no texto para a internet, a venda do livro da Dona Baratinha, o pagamento que pode ser feito por vários cartões. E, dessa forma, trabalham os vários gêneros a partir da história que está aqui. Elas estão aprendendo a ler e a escrever os diferentes gêneros de leitura e escrita que circulam na sociedade. Não só a ler, mas a reconhecer e a escrever também.
Salto – E qual a importância desse processo de alfabetização para o processo inteiro de uma educação ao longo da vida?
Magda Soares – Sem esse processo inicial, a educação não vai para frente. Eu tenho uma história interessante na minha vida profissional, porque eu comecei trabalhando com ensino médio, e aí eu passei para a segunda etapa do ensino fundamental, e pensei: ainda não é aí que eu tenho que trabalhar. Passei a trabalhar com pesquisa, a realizar estudos na prática com as séries iniciais, e de um tempo para cá percebi que tinha que ir para a educação infantil e para a creche, pois é aí que está a base. Se nós não formamos e não construirmos o alicerce aí, não há futuro para essas crianças. Porque sem dominar a leitura e a escrita e as práticas sociais de leitura e de escrita, eles não têm um futuro garantido na vida de aprendizagem, para aprender Geografia, História, até chegar ao ensino superior. Sem essa base não é possível. E na vida pessoal, profissional também, porque, em nosso mundo, se a pessoa não está inserida no mundo da escrita dificilmente vence, ou até mesmo não vence.
FONTE:
http://tvbrasil.org.br/saltoparaofuturo/entrevista.asp?cod_Entrevista=57
ANO DE 2005
Entrevista - Magda Soares
BB EducaR
Existem muitas pesquisas sobre o aprendizado da escrita. Os resultados desses trabalhos chegam ao alfabetizador?
Em um país como o nosso, com tanta extensão e diversidade, é impossível dizer se esses resultados chegam ?ao professor brasileiro?. A certos grupos chegam, a outros, não. Seria necessário que chegassem a todos. Esse é o papel que podem cumprir instrumentos que, como este jornal, buscam atingir o maior número possível de professores...
E o que têm revelado as pesquisas sobre o aprendizado da escrita?
Até os anos 80, as pesquisas na área de alfabetização eram, de certa forma, restritas, porque voltavam-se apenas para a questão metodológica. Toda a discussão se limitava à eficácia ou não de métodos: os analíticos, os sintéticos, o método global, o da palavração, o da silabação...
As pesquisas aumentaram a partir dos anos 80, como decorrência do chamado ?Construtivismo?, sobretudo pela influência dos estudos e pesquisas de Emília Ferreiro e de Ana Teberosky sobre o processo de aprendizagem da língua escrita pela criança. Passamos, então, a contar com um número grande de pesquisas, tomando como tema não mais o método de aprendizagem da língua escrita, mas o processo da criança na construção de conceitos sobre a língua escrita. O foco muda do ?como ensinar? para o ?como a criança aprende?. Depois, mais no fim dos anos 80, surgem as pesquisar lingüísticas: foi o momento em que os lingüistas finalmente se deram conta de que alfabetização era problema deles também.
Que contribuição as pesquisas trazem para o trabalho do alfabetizador?
Acho que ainda hoje falta integração entre as pesquisas sobre alfabetização. Cada pesquisador estuda uma faceta do ensino ou do aprendizado da língua escrita, privilegia um dos aspectos do processo. Porém, na sala de aula, na hora de a criança se alfabetizar, acontece tudo junto, todos esses aspectos estão presentes, simultaneamente. O que está faltando, para fins pedagógicos, é uma integração dos resultados das diferentes pesquisas que possibilite a tradução deles numa atuação didática, docente, capaz de orientar a criança no seu aprendizado. Talvez a falta dessa integração de resultados de pesquisas e de sua tradução em uma pedagogia da alfabetização é que explique as dificuldades que estamos enfrentando atualmente na alfabetização.
Hoje parece que há uma crise do Construtivismo, como se a crítica o considerasse uma teoria que não deu certo...
O Construtivismo não propôs métodos, nem tinha que propor, porque sempre se afirmou como uma teoria psicológica e não como uma teoria pedagógica. Mostra como a criança aprende, não se volta explicitamente para a questão de como o professor deve ensinar.
Foi um fenômeno - o chamado ?Construtivismo? na alfabetização - que, sob um ponto de vista sociológico, merecia ser estudado. Foi um movimento que invadiu as escolas de todo o País, e se multiplicaram os cursos para ensinar aos professores o ?Construtivismo?. Mas o que se ensinava a eles não era como alfabetizar a criança, era como a criança aprendia. Os métodos de alfabetização até então usados passaram a ser negados, com o argumento de que eles ignoravam o processo como a criança aprende. O que é uma verdade apenas parcial.
Costumo dizer que, antes do Construtivismo, os professores alfabetizadores tinham um método e nenhuma teoria. Eles ensinavam pelo global, pelo silábico, pelo fônico, mas as teorias que fundamentam esses métodos não eram discutidas. Eu mesma, quando formava professoras no então chamado Curso Normal, no que dizia respeito à alfabetização, discutia os métodos existentes e como é que se aplicava cada um. O Construtivismo veio negar esses métodos, mas não propôs outro método que os substituísse, trouxe uma teoria sobre a aprendizagem da língua escrita. Assim, antes se tinha um método e nenhuma teoria; depois passou-se a ter uma teoria e nenhum método. Passou-se até a considerar que adotar um método para alfabetizar era pecado mortal. Como se fosse possível ensinar qualquer coisa sem ter método...
Alguns professores acreditam que a solução para problemas na alfabetização será a retomada do método fônico e de outros métodos utilizados no passado. O que você acha disso?
Essa idéia de retomar métodos do passado faz parte daquela tendência tão comum, e tão enganosa, de considerar que antigamente tudo era melhor... Este recurso ao ?antigamente? é sempre um caminho falso. No caso da alfabetização, é um caminho falso porque antigamente o fracasso também era grande, como continua a ser hoje. A diferença é que, antes, ele era concentrado na série considerada ?de alfabetização?: o aluno não ia para frente, não era aprovado enquanto não se alfabetizasse, e os índices de reprovação na primeira série eram altos. Agora, o fracasso se deslocou. Passou a se evidenciar no meio e muitas vezes até mesmo no fim do ensino fundamental: alunos que chegam às séries ou ciclos finais dessa etapa semi-alfabetizados ou até não alfabetizados. Assim, o argumento de que o método fônico, usado sobretudo nos anos 70, dava certo e, portanto, deve ser retomado, não se sustenta. Isso porque havia reprovação e não-aprendizagem com o método fônico, como havia também com outros métodos. Não tem sentido uma volta ao passado esquecendo ou abandonando as contribuições fundamentais do Construtivismo e das ciências lingüísticas para a compreensão do processo de aprendizagem da língua escrita. Um exemplo: antes, o menino escrevia silabicamente e as professoras diziam: ?ele está engolindo letra, é disléxico, é preciso encaminhar para um psicólogo;? hoje, a teoria construtivista e os princípios lingüísticos evidenciam que escrever silabicamente é uma etapa normal do processo de descoberta do sistema de escrita. Fica claro como o avanço do conhecimento sobre a aprendizagem da língua escrita torna sem sentido torna sem sentido propostas de volta ao que se fazia antigamente.
Qual o prejuízo para a criança que aprende só pelo método fônico?
O mais adequado, pedagogicamente e até psicologicamente, é que a criança aprenda simultaneamente todas as competências e habilidades envolvidas na aquisição da língua escrita: aprenda a decodificar e codificar, isto é, aprenda as relações entre os ?sons? e as letras ou grafemas, ao mesmo tempo em que aprenda a compreender textos, a construir sentido para os textos, e ainda aprenda as funções da escrita, os diferentes gêneros de textos... Se o professor ensina seqüencialmente, sistematicamente, as relações fonema/grafema, como faz o método fônico, a criança acaba, sim, aprendendo a escrever e a ler, como codificação e decodificação, mas, e a compreensão? a construção de sentido? o entendimento das funções da escrita, o envolvimento em práticas sociais de leitura e escrita? Isso fica adiado ?para depois?; a criança aprende só a tecnologia da escrita, desligada de seus usos sociais, o que tira todo o sentido da tecnologia. Quando se reconhecem as várias facetas da escrita, não se pode aceitar que a criança aprenda com aquele tipo de texto ?O bebê baba?, ?Eva viu a uva?... textos que não circulam na sociedade, não fazem o menor sentido, não são um conto, uma poesia, uma parlenda, são artificialmente construídos com o único objetivo de ensinar a codificar e decodificar. Que conceito a criança constrói dos usos da língua escrita com textos como esses? A criança deve aprender a ler e a escrever interagindo com textos reais, com os diversos gêneros e portadores de texto que circulam na sociedade. Assim ela vai aprender não só as relações fonema/grafema, mas, simultaneamente, o sentido e função que tem a escrita.
Qual é então o método de alfabetização adequado no momento atual?
Cada uma das facetas da aprendizagem da língua escrita supõe um processo cognitivo específico. Não se aprende uma convenção (a relação fonema/grafema) da mesma forma que se aprende a construir sentido de um texto, a interpretar, a compreender. Aprender os diferentes usos e funções da escrita e os diferentes gêneros de texto também demanda processos cognitivos diferenciados.
A conseqüência é que, no estado atual dos conhecimentos sobre a língua escrita e sua aprendizagem, não se pode falar de um método de alfabetização, mas de métodos de alfabetização, no plural. Assim: ler histórias ou poemas ou textos informativos para as crianças, levá-las a interpretar esses diferentes textos supõe determinados procedimentos didáticos, enquanto que tomar palavras-chave de um texto lido e trabalhá-las para, com base nelas, desenvolver a aprendizagem das relações fonema/grafema supõe outros procedimentos. São diferentes métodos, diferentes procedimentos, porque são diferentes objetos de conhecimento e, portanto, diferentes processos de aprendizagem. Por isso, hoje é preciso ter métodos de alfabetização, não um único método de alfabetização.
SOARES, Magda. ?Nada é mais gratificante do que alfabetizar?. Letra A, Belo Horizonte, abril/maio 2005. Entrevista, p. 10-14.
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Fonte: site BB Educar 2005
http://www.fbb.org.br/bbeducar/pages/publico/expandir.fbb?codConteudoLog=2036
Data: 17/10/2005
NO ANO DE 2000
"LETRAR É MAIS QUE ALFABETIZAR" Entrevista com Magda Becker Soares
"LETRAR É MAIS QUE ALFABETIZAR"
Entrevista com Magda Becker Soares.
Nos dias de hoje, em que as sociedades do mundo inteiro estão cada vez mais centradas na escrita, ser alfabetizado, isto é, saber ler e escrever, tem se revelado condição insuficiente para responder adequadamente às demandas contemporâneas. É preciso ir além da simples aquisição do código escrito, é preciso fazer uso da leitura e da escrita no cotidiano, apropriar-se da função social dessas duas práticas; é preciso letrar-se. O conceito de letramento, embora ainda não registrado nos dicionários brasileiros, tem seu aflorar devido à insuficiência reconhecida do conceito de alfabetização. E, ainda que não mencionado, já está presente na escola, traduzido em ações pedagógicas de reorganização do ensino e reformulação dos modos de ensinar, como constata a professora Magda Becker Soares, que, há anos, vem se debruçando sobre esse conceito e sua prática.
- O que levou os pesquisadores ao conceito de "letramento", em lugar do de alfabetização?
- A palavra letramento e, portanto, o conceito que ela nomeia entraram recentemente no nosso vocabulário. Basta dizer que, embora apareça com freqüência na bibliografia acadêmica, a palavra não está ainda nos dicionários. Há, mesmo, vários livros que trazem essa palavra no título. Mas ela não foi ainda incluída, por exemplo, no recente Michaelis, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa , de 1998, nem na nova edição do Aurélio, o Aurélio Século XXI , publicado em 1999. É preciso reconhecer também que a palavra não foi incorporada pela mídia ou mesmo pelas escolas e professores. É ainda uma palavra quase só dos "pesquisadores", como bem diz a pergunta. O mesmo não acontece com o conceito que a palavra nomeia, porque ele surge como conseqüência do reconhecimento de que o conceito de alfabetização tornou-se insatisfatório.
- Por quê?
- A preocupação com um analfabetismo funcional [terminologia que a Unesco recomendara nos anos 70, e que o Brasil passou usar somente a partir de 1990, segundo a qual a pessoa apenas sabe ler e escrever, sem saber fazer uso da leitura e da escrita], ou com o iletrismo, que seria o contrário de letramento, é um fenômeno contemporâneo, presente até no Primeiro Mundo.
- E como isso ocorre?
- É que as sociedades, no mundo inteiro, tornaram-se cada vez mais centradas na escrita. A cada momento, multiplicam-se as demandas por práticas de leitura e de escrita, não só na chamada cultura do papel, mas também na nova cultura da tela, com os meios eletrônicos, que, ao contrário do que se costuma pensar, utilizam-se fundamentalmente da escrita, são novos suportes da escrita. Assim, nas sociedades letradas, ser alfabetizado é insuficiente para vivenciar plenamente a cultura escrita e responder às demandas de hoje.
- Qual tem sido a reação a esse fenômeno lá fora?
- Nos Estados Unidos e na Inglaterra, há grande preocupação com o que consideram um baixo nível de literacy da população, e, periodicamente, realizam-se testes nacionais para avaliar as habilidades de leitura e de escrita da população adulta e orientar políticas de superação do problema. Outro exemplo é a França. Os franceses diferenciam illettrisme muito claramente illettrisme de analphabétisme . Este último é considerado problema já vencido, com exceção para imigrantes analfabetos em língua francesa. Já illettrisme surge como problema recente da população francesa. Basta dizer que a palavra illettrisme só entrou no dicionário, na França, nos anos 80. Em Portugal é recente a preocupação com a questão do letramento, que lá ganhou a denominação de literacia, numa tradução mais ao pé da letra do inglês literacy .
- O que explica o aparecimento do conceito de letramento entre nós?
- Não se trata propriamente do aparecimento de um novo conceito, mas do reconhecimento de um fenômeno que, por não ter, até então, significado social, permanecia submerso. Desde os tempos do Brasil Colônia, e até muito recentemente, o problema que enfrentávamos em relação à cultura escrita era o analfabetismo, o grande número de pessoas que não sabiam ler e escrever. Assim, a palavra de ordem era alfabetizar. Esse problema foi, nas últimas décadas, relativamente superado, vencido de forma pelo menos razoável. Mas a preocupação com o letramento passou a ter grande presença na escola, ainda que sem o reconhecimento e o uso da palavra, traduzido em ações pedagógicas de reorganização do ensino e reformulação dos modos de ensinar.
- Como o conceito de letramento, mesmo sem que se utilize este termo, vem sendo levado à prática?
- No início dos anos 90, começaram a surgir os ciclos básicos de alfabetização, em vários estados; mais recentemente, a própria lei [Lei de Diretrizes e Bases, de 1996] criou os ciclos na organização do ensino. Isso significa que, pelo menos no que se refere ao ciclo inicial, o sistema de ensino e as escolas passam a reconhecer que alfabetização, entendida apenas como a aprendizagem da mecânica do ler e do escrever e que se pretendia que fosse feito em um ano de escolaridade, nas chamadas classes de alfabetização, é insuficiente. Além de aprender a ler e a escrever, a criança deve ser levada ao domínio das práticas sociais de leitura e de escrita. Também os procedimentos didáticos de alfabetização acompanham essa nova concepção: os antigos métodos e as antigas cartilhas, baseados no ensino de uma mecânica transposição da forma sonora da fala à forma gráfica da escrita, são substituídos por procedimentos que levam as crianças a conviver, experimentar e dominar as práticas de leitura e de escrita que circulam na nossa sociedade tão centrada na escrita.
- Como se poderia, então, definir letramento?
- Letramento é, de certa forma, o contrário de analfabetismo. Aliás, houve um momento em que as palavras letramento e alfabetismo se alternavam, para nomear o mesmo conceito. Ainda hoje há quem prefira a palavra alfabetismo à palavra letramento - eu mesma acho alfabetismo uma palavra mais vernácula que letramento, que é uma tentativa de tradução da palavra inglesa literacy , mas curvo-me ao poder das tendências lingüísticas, que estão dando preferência a letramento. Analfabetismo é definido como o estado de quem não sabe ler e escrever; seu contrário, alfabetismo ou letramento, é o estado de quem sabe ler e escrever. Ou seja: letramento é o estado em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive: sabe ler e lê jornais, revistas, livros; sabe ler e interpretar tabelas, quadros, formulários, sua carteira de trabalho, suas contas de água, luz, telefone; sabe escrever e escreve cartas, bilhetes, telegramas sem dificuldade, sabe preencher um formulário, sabe redigir um ofício, um requerimento. São exemplos das práticas mais comuns e cotidianas de leitura e escrita; muitas outras poderiam ser citadas.
- Ler e escrever puramente tem algum valor, afinal?
- Alfabetização e letramento se somam. Ou melhor, a alfabetização é um componente do letramento. Considero que é um risco o que se vinha fazendo, ou se vem fazendo, repetindo-se que alfabetização não é apenas ensinar a ler e a escrever, desmerecendo assim, de certa forma, a importância de ensinar a ler e a escrever. É verdade que esta é uma maneira de reconhecer que não basta saber ler e escrever, mas, ao mesmo tempo, pode levar também a perder-se a especificidade do processo de aprender a ler e a escrever, entendido como aquisição do sistema de codificação de fonemas e decodificação de grafemas, apropriação do sistema alfabético e ortográfico da língua, aquisição que é necessária, mais que isso, é imprescindível para a entrada no mundo da escrita. Um processo complexo, difícil de ensinar e difícil de aprender, por isso é importante que seja considerado em sua especificidade. Mas isso não quer dizer que os dois processos, alfabetização e letramento, sejam processos distintos; na verdade, não se distinguem, deve-se alfabetizar letrando .
- De que forma?
- Se alfabetizar significa orientar a criança para o domínio da tecnologia da escrita, letrar significa levá-la ao exercício das práticas sociais de leitura e de escrita. Uma criança alfabetizada é uma criança que sabe ler e escrever; uma criança letrada (tomando este adjetivo no campo semântico de letramento e de letrar, e não com o sentido que tem tradicionalmente na língua, este dicionarizado) é uma criança que tem o hábito, as habilidades e até mesmo o prazer de leitura e de escrita de diferentes gêneros de textos, em diferentes suportes ou portadores, em diferentes contextos e circunstâncias. Se a criança não sabe ler, mas pede que leiam histórias para ela, ou finge estar lendo um livro, se não sabe escrever, mas faz rabiscos dizendo que aquilo é uma carta que escreveu para alguém, é letrada, embora analfabeta, porque conhece e tenta exercer, no limite de suas possibilidades, práticas de leitura e de escrita. Alfabetizar letrando significa orientar a criança para que aprenda a ler e a escrever levando-a a conviver com práticas reais de leitura e de escrita: substituindo as tradicionais e artificiais cartilhas por livros, por revistas, por jornais, enfim, pelo material de leitura que circula na escola e na sociedade, e criando situações que tornem necessárias e significativas práticas de produção de textos.
- O processo de letramento ocorre, então, mesmo entre crianças bem pequenas...
- Pode-se dizer que o processo começa bem antes de seu processo de alfabetização: a criança começa a "letrar-se" a partir do momento em que nasce numa sociedade letrada. Rodeada de material escrito e de pessoas que usam a leitura e a escrita - e isto tanto vale para a criança das camadas favorecidas como para a das camadas populares, pois a escrita está presente no contexto de ambas -, as crianças, desde cedo, vão conhecendo e reconhecendo práticas de leitura e de escrita. Nesse processo, vão também conhecendo e reconhecendo o sistema de escrita, diferenciando-o de outros sistemas gráficos (de sistemas icônicos, por exemplo), descobrindo o sistema alfabético, o sistema ortográfico. Quando chega à escola, cabe à educação formal orientar metodicamente esses processos, e, nesse sentido, a Educação Infantil é apenas o momento inicial dessa orientação.
- O processo de letramento ocorre durante toda a vida escolar?
- A alfabetização, no sentido que atribuí a essa palavra, é que se concentra nos primeiros anos de escolaridade. Concentra-se aí, mas não ocorre só aí: por toda a vida escolar os alunos estão avançando em seu domínio do sistema ortográfico. Aliás, um adulto escolarizado, quando vai ao dicionário, resolver dúvida sobre a escrita de uma palavra está retomando seu processo de alfabetização. Mas esses procedimentos de alfabetização tardia são esporádicos e eventuais, ao contrário do letramento, que é um processo que se estende por todos os anos de escolaridade e, mais que isso, por toda a vida. Eu diria mesmo que o processo de escolarização é, fundamentalmente, um processo de letramento.
- Em qualquer disciplina?
- Em todas as áreas de conhecimento, em todas as disciplinas, os alunos aprendem através de práticas de leitura e de escrita: em História, em Geografia, em Ciências, mesmo na Matemática, enfim, em todas as disciplinas, os alunos aprendem lendo e escrevendo. É um engano pensar que o processo de letramento é um problema apenas do professor de Português: letrar é função e obrigação de todos os professores. Mesmo porque em cada área de conhecimento a escrita tem peculiaridades, que os professores que nela atuam é que conhecem e dominam. A quantidade de informações, conceitos, princípios, em cada área de conhecimento, no mundo atual, e a velocidade com que essas informações, conceitos, princípios são ampliados, reformulados, substituídos, faz com que o estudo e a aprendizagem devam ser, fundamentalmente, a identificação de ferramentas de busca de informação e de habilidades de usá-las, através de leitura, interpretação, relacionamento de conhecimentos. E isso é letramento, atribuição, portanto, de todos os professores, de toda a escola.
- Mas seria maior a responsabilidade do professor de Português?
- É claro que o professor de Português tem uma responsabilidade bem mais específica com relação ao letramento: enquanto este é um "instrumento" de aprendizagem para os professores das outras áreas, para o professor de Português ele é o próprio objeto de aprendizagem, o conteúdo mesmo de seu ensino.
- Muitos pais reclamam do fato de, hoje, os grandes textos de literatura, nos livros didáticos, darem lugar a letras de música, rótulos de produtos, bulas de remédio. O que essa ênfase nos textos do dia-a-dia tem de positivo e o que teria de negativo?
- É verdade que o conceito de letramento, bem como a nova concepção de alfabetização que decorre dele e também das teorias do construtivismo que chegaram ao campo da educação e do ensino nos anos 80, trouxeram um certo exagero na utilização de diferentes gêneros e diferentes portadores de texto na sala de aula. É realmente lamentável que os textos literários, até pouco tempo atrás exclusivos nas aulas de Português, tenham perdido espaço. É preciso não esquecer que, exatamente porque a literatura tem, lamentavelmente, no contexto brasileiro, pouca presença na vida cotidiana dos alunos, cabe à escola dar a eles a oportunidade de conhecê-la e dela usufruir. Por outro lado, tem talvez faltado critério na seleção dos gêneros. Por exemplo: parece-me equivocado o trabalho com letras de música, que perdem grande parte de seu significado e valor se desvinculadas da melodia: é difícil apreciar plenamente uma canção de Chico Buarque ou de Caetano Veloso lendo a letra da canção como se fosse um poema, desligada ela da música que é quem lhe dá o verdadeiro sentido e a plena expressividade. Parece óbvio que devem ser priorizados, para as atividades de leitura, os gêneros que mais freqüentemente ou mais necessariamente são lidos, nas práticas sociais, e, para as atividades de produção de texto, os gêneros mais freqüentes ou mais necessários nas práticas sociais de escrita. Estes não coincidem inteiramente com aqueles, já que há gêneros que as pessoas lêem, mas nunca ou raramente escrevem, e há gêneros que as pessoas não só lêem, mas também escrevem. Por exemplo: rótulos de produtos são textos que devemos aprender a ler, mas certamente não precisaremos aprender a escrever. Assim, a adoção de critérios bem fundamentados para selecionar quais gêneros devem ser trabalhados em sala de aula, para a leitura e para a produção de textos, afastará os aspectos negativos que uma invasão excessiva e indiscriminada de gêneros e portadores sem dúvida tem.
- A condução do processo de letramento difere, no caso de se lidar com uma criança de classe mais favorecida ou com uma de classe popular?
- Em sociedades grafocêntricas como a nossa, tanto crianças de camadas favorecidas quanto crianças das camadas populares convivem com a escrita e com práticas de leitura e escrita cotidianamente, ou seja, umas e outras vivem em ambientes de letramento. A diferença é que crianças das camadas favorecidas têm um convívio inegavelmente mais freqüente e mais intenso com material escrito e com práticas de leitura e de escrita do que as crianças das camadas populares, e, o que é mais importante, essas crianças, porque inseridas na cultura dominante, convivem com o material escrito e as práticas que a escola valoriza, usa e quer ver utilizados. Dois aspectos precisam, então, ser considerados: de um lado, a escola deve aprender a valorizar também o material escrito e as práticas de leitura e de escrita com que as crianças das camadas populares convivem; de outro lado, a escola deve dar oportunidade a essas crianças de ter acesso ao material escrito e às práticas da cultura dominante. Da mesma forma, a escola que serve às camadas dominantes deve dar oportunidade às crianças dessas camadas de conhecer e usufruir da cultura popular, tendo acesso ao material escrito e às práticas dessa cultura.
- Como deve ser a preparação do professor para que ele "letre"? Em que esse preparo difere daquele que o professor recebe hoje?
- Entendendo a função do professor, de qualquer nível de escolaridade, da Educação Infantil à educação pós-graduada, como uma função de letramento dos alunos em sua área específica, o professor precisa, em primeiro lugar, ser ele mesmo letrado na sua área de conhecimento: precisa dominar a produção escrita de sua área, as ferramentas de busca de informação em sua área, e ser um bom leitor e um bom produtor de textos na sua área. Isso se refere mais particularmente à formação que o professor deve ter no conteúdo da área de conhecimento que elegeu. Mas é preciso, para completar uma formação que o torne capaz de letrar seus alunos, que conheça o processo de letramento, que reconheça as características e peculiaridades dos gêneros de escrita próprios de sua área de conhecimento. Penso que os cursos de formação de professores, em qualquer área de conhecimento, deveriam centrar seus esforços na formação de bons leitores e bons produtores de texto naquela área, e na formação de indivíduos capazes de formar bons leitores e bons produtores de textos naquela área.
(Jornal do Brasil - 26/11/2000)
ARTIGOS :
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n25/n25a01.pdf
Letramento e alfabetização: as muitas facetas*
Artigo: A reinvenção da alfabetização - Magda Soares
http://proportoseguro.blogspot.com/2009/01/artigo-reinveno-da-alfabetizao-magda.html
Língua escrita, sociedade e cultura
Relações, dimensões e perspectivas
Magda Becker Soares
http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n00/n00a02.pdf
NOVAS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA:
LETRAMENTO NA CIBERCULTURA
MAGDA SOARES*
http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935.pdf
O QUE É LETRAMENTO
http://verzeri.org.br/artigos/003.pdf